Cultura é importante para uma Startup?
Cultura é o padrão de comportamento comum entre membros de um grupo. Diz-se que cultura é como as pessoas agem quando ninguém está olhando. Quando a cultura é forte, ela reflete os valores do grupo e seus membros respondem de forma consistente aos desafios. Isso cria sinergia em relação a objetivos comuns.
A maioria das empresas faz questão de articular os seus “valores” e “missão” (quem nunca viu os cartazes nas paredes de salas de reuniões e recepção da empresa?). Na minha experiência, os cartazes são uma perda de tempo em uma empresa jovem. Cultura real se forma através de exemplos práticos e depois, histórias e símbolos que formam a mitologia da empresa. O cultivo dessa cultura pode acontecer de forma deliberada ou inconsciente.
Cultura não é suficiente, mas é necessária à sobrevivência de uma startup, porque é o que mantém as pessoas unidas nos inevitáveis momentos de dificuldades e incertezas que virão.
A empresa frugal
Era uma vez, começamos uma empresa no Vale em 1992. Sobrevivemos e crescemos de forma orgânica, sem injeção de capital externo. Então, frugalidade era parte do nosso DNA, era um valor importante na cultura da empresa. Não existiam cartazes na recepção, mas nós comprávamos passagens de classe econômica e nossas despesas corporativas não incluiam restaurantes chiques.
Na medida que nós crescemos, em torno de 2002, começamos a contratar vários diretores e executivos, alguns vindo de empresas grandes com nomes conhecidos. Os recém-chegados estavam acostumados a classe executiva e vinhos importados, e isso naturalmente criou problemas. Os antigos se sentiam incomodados com a atitude dos recém-chegados. Os recém-chegados achavam que a empresa era muquirana sem necessidade.
Nossa reação foi estabelecer uma “política de despesas de viagens” para padronizar o comportamento dos funcionários. Ditamos um limite de gastos para diárias de hotel e alimentação que eram razoáveis para a grande maioria das situações comuns, dentro dos critérios da nossa cultura.
Aprendi muito com a história que seguiu essa situação.
Contando histórias
Como um dos “antigos”, eu tinha uma coleção de histórias de frugalidade, algumas bastante engraçadas.
Durante essa época de turbulência, tivemos um happy hour e eu contei algumas delas na mesa do bar. Uma vez ficamos em um Motel 6 (uma rede de hotéis baratos de beira de estrada) e dividimos quartos quando fomos a Las Vegas participar da Comdex. Ou quando eu quase fui atropelado por um ônibus na frente do Moscone Center em San Francisco, quando tentava contrabandear um terminal IBM 3270 para dentro da área de exposições tentando evitar pagar a taxa de equipamento.
Essas histórias não eram novas para mim ou para os antigos, mas eram novidade para os recém-chegados. Elas se espalharam rápidamente e, nos dias que se seguiram, as ouvi recontadas nos corredores da empresa.
Hoteis baratos e roedores
No mesmo período, eu (que era o CTO) e o CEO da empresa estávamos planejando nosso tour anual para falar com a mídia e os analistas de mercado em New York e Boston. Para quem já visitou essas cidades, é claro que $100 não dá para a diária de nenhum lugar razoável para passar uma noite. Certamente fazia sentido abrir uma excessão à regra e pagar um pouco mais para ficar próximo às reuniões.
Quando a secretária fazendo as reservas veio nos perguntar sobre isso, nós decidimos aderir ao que estava na política recém-publicada. Tivemos que ficar em Queens para as reuniões em New York e fora da cidade em um hotel bem ruim em Boston (que tinha ratos correndo pelo corredor).
Quando retornamos da viagem, a gerente de PR (que ficou muito brava) contou as histórias do que passamos na viagem. Eu observei o mesmo fenômeno anterior, as histórias se propagaram pelos corredores.
Mitologia da empresa
Depois dos eventos descritos, nunca mais tivemos problemas ou reclamações relacionados a despesas de viagem. Todos, antigos e recém-chegados, internalizaram frugalidade como um valor cultural da empresa. Se tivéssemos retirado as políticas publicadas, nada mudaria.
Em retrospecto, foi isso que aconteceu:
- As histórias antigas, que os antigos viveram ou conheceram indiretamente formam a mitologia da empresa. Essa mitologia influencia as pessoas através dos canais inconscientes do cérebro para suportar a cultura da empresa.
- A decisão de seguir a política mesmo quando claramente a decisão racional era abrir uma excessão serviu de símbolo e validou a cultura. Se o CEO se sujeita a passar uma noite em Queens e acordar 2 horas antes para ir a uma reunião em NYC, porque alguém iria reclamar de ter que ficar no Courtyard ao invés do Marriott em Kansas?
Para evitar a diluição da cultura quando a empresa cresce, para cultivar novos valores positivos, organizações maduras precisam fazer tudo que você encontra nos livros e estuda no MBA: articular os valores e missão da empresa claramente, considerar perfil pessoal na hora da contratação, oferecer treinamento a novos funcionários, implementar políticas e processos alinhados.
Mas, o que a prática me ensinou é que, mais importante para empresas jovens, é colecionar histórias (verdadeiras, mas realce os detalhes que as tornam interessantes e memoráveis se necessário) e cultivar a mitologia da empresa através do uso repetido delas. Esse processo precisa ser autêntico, mas pode contar com um pouco de disciplina intencional.
Ser verdadeiro em relação aos seus valores é bom, mas não é suficiente. A liderança precisa prover símbolos, a validação prática da cultura da empresa. As vezes, ela precisa desafiar o bom-senso para criar símbolos memoráveis que transmitam valores claramente.
Steve Jobs também fazia isso
Mesmo quem nunca trabalhou na Apple já ouviu as histórias de como o Steve Jobs demitia funcionários no meio de uma reunião se ele não gostasse de um detalhe de um design. Funcionários da Apple precisam prestar atenção aos detalhes. Eles sabem que a experiência dos usuários dos produtos é importante. Eles sabem que se não internalizarem esses valores, o Steve Jobs vai humilhá-los e demiti-los na próxima reunião.
Você acha que o Steve Jobs andava pelos corredores gritando e demitindo gente o tempo todo? Não. Ele provavelmente fez isso poucas vezes. Mas essas ocasiões foram memoráveis e passaram de funcionário a funcionário (ou mesmo fora da empresa) através das histórias que contamos uns aos outros.
